Professor Kabengele Munanga

Carta aberta às/aos Colegas, companheiras e companheiros do CNPIR ( Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial)

Por razões de força maior, não pude participar da 26ª reunião ordinária
do Conselho. Mas Li o texto da minuta que me foi encaminhado por nossa
querida Oraida Abreu e concordo integralmente com seu conteúdo. Creio que todas as lutas podem ter resultados positivos ou negativos, felizes ou infelizes. Durante quase dez anos de tramitação entre os órgãos legislativos, o Estatuto da Igualdade Racial foi constantemente bombardeado pelas mídias, pelos intelectuais ditos especialistas da questão racial. Estes chegaram até a organizar dois abaixo-assinados contra o estatuto e as cotas, sem contar os livros expressamente publicados numa corrida contra o relógio como “A Permanência da Raça” de Peter Fry – “Não somos racistas” de Ali Camel – “As Divisões Perigosas” de Peter Fry, Ivone Maggie et companhia – “Uma gota de sangue” de Demétrio Magnoli- etc. Os espaços da grande mídia para debater cotas e estatuto da Igualdade foram abertos principalmente para os detratores dos dois projetos de grande mudança que beneficiariam a população negra e afro descendente e fechados para os defensores das mudanças.

Como se não bastasse, o relator do processo, o Senador Demóstene,
declarou abertamente diante das Câmaras e do mundo inteiro que no regime
escravocrata não houve verdadeiramente estupro da escravizada negra,
pois se algo ocorreu nesse sentido foi com consentimento das próprias
estupradas. Declarou também que o tráfico negreiro não foi uma violência
exterior, pois contou com a cumplicidade dos próprios africanos que
comercializavam seus irmãos. Vocês imaginam o que aconteceria hoje com
um Senador da República nos Estados Unidos ou em qualquer outro país
ocidental que se permitiria dizer tantas insanidades políticas? Mais
grave ainda, esse Senhor é Presidente da Comissão de justiça e direitos
humanos do Senado! Aqui nada aconteceu, pelo contrário,o Nobre Senador
foi até defendido na grande imprensa pelo mesmo intelectual detrator das
cotas!

Considerando todas essas dificuldades, penso que o resultado obtido pela
aprovação deste estatuto que passou por numerosas negociações
acompanhadas de modificações é muito significativo para uma luta feita
com armas tão desiguais. Pensem que os africanos resistiram contra a
invasão dos colonizadores ocidentais com arcos e flechas ou com fuzis de
pólvora obsoletos contra as metralhadoras. Finalmente, perderam e suas
terras foram ocupadas porque não houve equilíbrio das relações de força.
Mas continuamos a defender nossa dignidade humana que foi coroada pelas
independências. Estamos travando novas lutas para construir as
nacionalidades, a democracia e o bem estar dos povos. É um longo
processo cuja duração não podemos medir, mas que certamente terminará
com a vitória.

No caso do Estatuto da Igualdade Racial, penso que não perdemos
totalmente. Perdemos sim, parcialmente, por que não saiu com as
garantias que queríamos, mas todo não foi totalmente destruído. Mas
creio que a luta continua até a vitória final que virá, penso eu, o dia
em que seremos capazes de mobilizar politicamente mais de 50 % da
população brasileira que carrega o sangue africano. O dia em que os
políticos brasileiros tiverem a certeza de que não podem mais comprar o
voto “negro” com migalhas ou com garrafa de pinga durante as campanhas
eleitorais, as brincadeiras, farsas e humilhações como as do Nobre
Senador não terão mais lugar.

Concluindo, li atentamente o texto da minuta que vocês conceberam. Em
gesto de solidariedade e respeitando o voto da maioria do/as colegas e
conselheiros e conselheiras, encaminho positivamente em favor da sanção
do Estatuto pelo Presidente da República. Nada posso lhes ensinar, pois
peguei o bonde andando quando vocês já estavam dentro. Vocês muito me
ensinaram e continuarão a me ensinar, pois os fragmentos de reflexão
desenvolvidos na Academia em grande parte com a ajuda de vocês não se
comparam aos anos de luta e de militância herdadas de Zumbi dos Palmares
que vocês acumulam. Se vocês me permitirem terminaria com uma pequena
reflexão sobre a história dos caçadores coletores Mbuti da África
Central, pejorativamente conhecidos na literatura como pigmeus.

São meses e meses que os caçadores estão na floresta para caçar um
elefante, cuja carne alimentaria a população durante alguns meses.
Infelizmente não tiveram o sucesso esperado e voltam para aldeia
trazendo apenas três antílopes. Decepcionados e frustrados, as mulheres
e os filhos se contentam desses pequenos animais cuja carne cobriria
necessidades de poucos dias. Mas eles não culpam os caçadores, mas sim o
Mulimo, Deus da caça, o único Deus que esse povo monoteísta conhece e
cuja aproximação da esfera dos humanos afasta a caça e prejudica as
atividades de sobrevivência. Daí a necessidade de lhe oferecer uma
galinha preta para afastá-lo longe da esfera humana.

Moral da história: Creio que nossos negociadores parlamentares e
políticos fizeram o melhor possível para trazer o elefante.
Independentemente de sua vontade só conseguiram os antílopes. Agora
vamos jogá-los em vez de aceitá-los e encorajar nossos caçadores para
continuar a luta? Alguns sensíveis e emotivos como eu, encheram os olhos
de lagrimas quando o Senador Paulo Pahim defendeu o Estatuto da
Igualdade Racial na Audiência Publica sobre a constitucionalidade das
cotas organizada pelo STF em março passado. Ele estava muito emocionado
e não escondeu suas lágrimas que provocaram as nossas. Agora, por que
não podemos abraçá-lo novamente e aplaudi-lo pelo que ele conseguiu? A
luta deve continuar, segurando firmemente o pouco que já conseguimos.

Axé.