Fonte: Gazeta do Povo

Publicado em 17/05/2008 | MARCILENE LENA GARCIA DE SOUZa

Muitas vezes assistimos uma sistemática tentativa, por parte dos meios de comunicação, de reforçar uma única identidade cultural para a cidade de Curitiba: “População branca, descendente de europeu, católica, alfabetizada e urbana”.

O planejamento urbano de Curitiba nas décadas de 1960 e 1970 corroborou com a imagem de uma cidade “que deu certo”, sobretudo, na década de 90, quando esta alcançou status de cidade de “Primeiro Mundo”, “Cidade Modelo”, sendo vista como “Capital Européia” do país. Uma das principais características desta urbanização foi a reserva dos bairros mais afastados, bem como a Região Metropolitana para os mais pobres. Ainda dentro desta perspectiva, a população de origem européia torna-se centro, isto é, a face “saudável e civilizada”. Ao mesmo tempo, a cidade se consagra como a de “todas as gentes”, uma espécie de “laboratório racial” modelo para o mundo.

Este discurso, que pode até ser visto como modernizante, atualmente reforça a imagem de uma cidade sem negros. Basta refletir, por exemplo, a arquitetura, os monumentos, parques, bosques e portais e os pontos turísticos da cidade. Fator em que impactam direta ou indiretamente em importantes esferas sociais como a educação e os meios de comunicação. Nestes espaços vemos uma exclusão dos pobres de forma geral e dos negros de forma singular e específica.

Há uma articulação entre cultura dominante e estratégias de poder simbólico que constrói e ratifica este imaginário dentro e fora da cidade. Há um consenso estruturado ideologicamente. Salienta-se que estas políticas institucionalizadas de racismo que se manifestam na forma de hierarquização das diferenças culturais, por exemplo, se observam em muitos livros didáticos publicados pela prefeitura, que reforçam a “imagem” de uma cidade justa e “igualitária”, que preserva a memória de todos os curitibanos, de todas as “etnias”, na construção de um só povo, mas que “apaga” os negros de sua história, quando não considera a sua existência.

O perfil da escravidão negra em Curitiba, que teve fim em 1888, é um tema que poucos alunos saberiam informar, caso fosse conteúdo de qualquer vestibular no Estado. Esta invisibilidade também se encontra na produção de conhecimento de intelectuais contemporâneos em que raramente se nota críticas sobre a invisibilidade do negro no Paraná. Muitos deles reforçam a crença num perfil de escravidão mais branda. Há um limite de informações sobre a população negra em Curitiba, assim como as práticas racistas que acontecem no cotidiano desta cidade. E que não são poucas.

Basta pensar que na cidade, há décadas, existem grupos skinheads que perseguem negros. Em 2006, eles colaram dezenas de adesivos no Centro Cultural da Cidade (Largo da Ordem) com a seguinte frase: “Mistura racial, não, obrigada!”. Lembremos, ou saibamos que, ainda hoje, os adeptos de religiões de matriz africana sofrem intolerância religiosa nos diversos espaços da cidade.

Portanto, chamamos a atenção para a existência de um processo de fragmentação dos fatos históricos, silêncio, ocultamento e hierarquização das diferenças culturais em Curitiba. Questiono: quem são estes anônimos negros que vivem em Curitiba? Qual é a história dos negros na cidade? Por que temos um bairro que se chama Rebouças? Quem são os “Voluntários da Pátria” que dão nome a uma rua da cidade? Por que só conhecemos (ou reconhecemos) a história de Curitiba a partir da vinda dos imigrantes se a sua formação é de 1693? Por que não há parques e bosques que homenageiam e reconhecem a importância dos negros na história da cidade? Qual é a memória cultural da cidade? Qual é a memória que se quer preservada?

Ser “invisível” implica ter invisibilizado seus direitos sociais. Não ser reconhecido em suas singularidades identitárias, é ter um pouco de sua história apagada. Quando se observa os signos, os negros nesta cidade simplesmente não existem, nem como singulares, nem como iguais.

Atentamos para a deficiência de construções de representações que possam mostrar uma identificação da população negra com a sua cidade. Até o Carnaval, nos últimos anos, tem acontecido em ruas mais afastadas do Centro da cidade e com pouco apoio financeiro da Prefeitura. Apesar do ideário europeu, Curitiba é a capital do Sul do Brasil com maior percentual de negros. “É a capital preta do Sul”.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2005, em Curitiba e Região Metropolitana, os negros (pretos e pardos) somam 19,7%. Os indicadores mostram que em relação à educação, quando comparamos os anos de escolaridade de negros e brancos, vemos que os brancos têm 9,3 anos de estudo para 7,4 anos de estudo dos pretos e pardos; em termos salariais, os brancos recebem em média 4,7 salários mínimos para 2,6 salários mínimos dos pretos e pardos. Para o Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDS) de 2006, os negros em Curitiba e Região Metropolitana, em média, recebem 60,5% do salário dos brancos. A maior diferença salarial está nas áreas de educação, saúde, serviços sociais e administração pública (47% do rendimento dos brancos).

Contudo, precisamos refletir a identidade de Curitiba também pelo cotidiano das relações étnico-raciais que se fazem presentes nos atos mais simples como, por exemplo, a receptividade do curitibano à cultura de herança africana e afrobrasileira. A despeito de diversas estratégias de invisibilizar a contribuição desta população para a formação da cidade, é nas relações cotidianas que vemos a presença deste povo, sua culinária, sua arte, música, religião (lembremos que Curitiba tem centenas de terreiros de umbanda e candomblé que contribuem significativamente para a resistência da cultura negra na cidade); o Movimento Hip-Hop – que tem centenas de bandas de rap, de grupos de grafiteiros, DJs e break e que fazem ações importantes ao levar arte e cultura para a periferia de Curitiba –; além da cultura nordestina, presente em vários espaços sociais com Samba de Roda, Forró, Maracatu.

A juventude negra quer ser reconhecida. Quer, inclusive, entrar na Universidade por cotas, quer emprego e cidadania. Para visibilizar esta população, existe o Movimento Social Negro que, há décadas, critica o modelo de projeto construído para esta cidade e que vem sendo reforçado nas várias gestões em que a população negra tem sido sistematicamente marginalizada e excluída.

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Marcilene Lena Garcia de Souza é socióloga, doutoranda em Sociologia pela UNESP; mestre em Sociologia pela UFPR; Diretora Licenciada do IPAD BRASIL; pesquisadora sobre Relações Raciais no Paraná.