A lei 10.639/03 pode constituir-se como uma ferramenta importante para o combate ao racismo e consequentemente, para a superação do quadro de desigualdades raciais e sociais presente na sociedade brasileira. Infelizmente, para a grande maioria dos envolvidos no processo de educação escolar, a relação entre raça/racismo e educação passa despercebida. Esta parece ser invisível, aos olhos dos brancos, amarelos, índios e dos próprios negros. Perpassa pelos bancos escolares uma névoa ideológica, “quase imperceptível” de sustentação à crença de inferioridade do grupo negro e de naturalização das desigualdades. Para tanto, a Lei 10.639/03 deve atuar no sentido de desvelar construções ideológicas que deram suporte à efetivação do quadro de exclusão social da população negra no país, como a da inferioridade do negro e a do mito da democracia racial brasileira.

Para compreender a situação da população negra no país e estabelecer ações para transformá-la, é preciso compreender e superar essa “névoa ideológica” produzida pelas relações de dominação no Brasil. Os colonizadores e em seguida, a recém elite capitalista brasileira utilizaram-se de uma série de idéias para justificar a escravidão de africanos, bem como manter os negros à margem das novas relações sociais oriundas com o trabalho livre. No primeiro momento, é constituída um conjunto de idéias no campo da ciência, do Estado e da religião, a fim de justificar a escravidão e facilitar a administração dos escravos. Esse conjunto de idéias, aqui denominado “Ideologia de Dominação Racial”, construiu uma imagem do negro irreal, porém, hegemônica para os dominantes da época. Assim, os negros e indígenas eram considerados seres inferiores e não civilizados.

No campo da ciência difundiram-se estudos que propagavam a inferioridade dos negros e a superioridade dos brancos. Um deles, o Ensaio sobre as Desigualdades das Raças Humanas do Conde de Gobineau, que ganhou certa notoriedade no Brasil, afirmava “quanto mais diluído o sangue branco/ariano maior a decadência!” Desta forma, as raças menos humanas precisariam estar a serviço dos projetos de sociedade das raças superiores.A legitimidade para a escravidão também foi justificada por uma interpretação bíblica feita pela igreja. Por esta, os africanos seriam um povo amaldiçoado, descendente de Cam, filho de Noé, que teria cometido um pecado grave ao espiar o pai nu.

Outro elemento que corroborou com a difusão do mito da inferioridade do negro foi a campanha oficial para o embranquecimento da população brasileira, realizada pelo governo brasileiro e por intelectuais da época. Acreditavam estes que o país só progrediria se a sua população ficasse mais branca. Assim, o Estado brasileiro investiu pesadamente em programas de imigração de europeus. “A albumina branca depura o mascavo nacional…” O lema da campanha fala por si só.

Aliado ao mito da inferioridade do negro, ocupa terreno na sociedade brasileira, o mito da democracia racial. A elite brasileira por séculos tentou esconder ou minimizar os efeitos da escravidão e da inserção no capitalismo brasileiro para a população negra, transformando assim, o quadro de exclusão do negro em algo natural. As desigualdades raciais são assim naturalizadas e justificadas. Para o êxito da constituição do mito da democracia racial foi necessário apagar a história da resistência dos negros à escravidão, bem como a presença do grupo étnico negro no país. Para tanto, o Estado brasileiro em 1890 determina a queima dos documentos relacionados à escravidão e omite dos recenseamentos a composição étnico-racial da população. O quesito cor aparece no Censo de 1950. É omitido no censo de 1900, 1920,1960 e 1970. Retorna em 1980 por reivindicação do movimento social negro. A idéia de que no país não há racismo e da convivência harmoniosa dos grupos étnico/raciais aqui viventes ganhou notoriedade em vários países do mundo. Tanto que, a própria UNESCO nos anos 50, financiou no país, pesquisas de intelectuais como Florestan Fernandes, Roger Bastide e Oracy Nogueira, sobre as relações raciais no Brasil, a fim de desvendar a democracia racial brasileira. Felizmente as pesquisas demonstraram que esta era apenas mais um mito estruturante da realidade brasileira. A consciência da desigualdade racial começa a ganhar um pouco mais de espaço no conjunto da sociedade recentemente, a partir das denúncias efetuadas pelo movimento social negro e especialmente, pela divulgação de vários estudos e pesquisas sobre as desigualdades raciais no país. Uma boa parte destas incentivadas pelo clima da realização da Conferência Mundial da ONU contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia e a Intolerância ocorrida em Durban, na África do Sul, de 31 de agosto a 7 de setembro de 2001.

Porém, estas construções ideológicas, estes mecanismos ideológicos de dominação, continuam presentes, ainda hoje, nas escolas, no livro didático, na formação do professor e do aluno, na consciência social do país.

Nosso desafio, é a partir da implementação da Lei 10639/03 e a Deliberação 04/06 do Conselho Estadual de Educação atuarmos para romper os silêncios que foram fundamentais para a constituição de uma ideologia de dominação social e racial em nosso país. Como diz Marilene Chauí: “O silêncio ao ser falado, destrói o discurso que o silenciava”.